20 de outubro de 2005

E era assim...

ACHAVA sempre que ela cairia em sua conversa fiada, pois sua ingenuidade ainda era pueril. Nada pode mudar de uma hora pra outra. Até que um dia, ela levantou: o pé direito, o esquerdo, coluna alinhada, a cabeça erguida. E ele se espantou em vê-la bem, sem ele.
ENTÃO começou com uma ladainha – não a emocionou. Depois veio uma cantiga – não teve resposta. Foi a vez do sermão – não acertou o alvo. Um dia lembrou de seu ar maternal – vou falar que quero morrer, a morte é o único meio para atingir o fim. E ela caiu, de patinhas. Sua queda foi para ele uma espécie de elixir revigorante, estava disponível a todos, se sentia vivo. Para ela, se vestiu de caixão cor-de-rosa com verdes funebrilhos e se fez de morto, se disse encantado.
O tombo foi feio, mas ela se levantou: o pé direito, o esquerdo, a coluna ereta e começou a caminhar. Agora já conhece todos os seus truques, suas mentiras. O encanto acabou.

19 de outubro de 2005

TEM coisas que a gente acha que nunca vai acontecer com a gente. Relato aqui um diálogo entre mim e um senhor na Rua 13 de maio, às 7h00 da manhã.
ELE: "Bom dia, vamos atravessar a rua juntos?"
EU: "Claro! O senhor quer ajuda?"
ELE: "Sim, esse lugar é um pouco perigoso para atravessar sozinho. As pessoas viram aqui como umas loucas, né?"
EU: "É verdade! Então vamos."
[E ele pegou no meu braço]
ELE: "Onde você mora?"
EU: "Ih, eu moro longe, no Morumbi!"
ELE: "E o que você veio fazer aqui?"
EU: "Trabalhar."
ELE: "Ah, que bom. Olha, eu moro logo ali, do lado do prédio que você trabalha. Quer conhecer o meu apartamento?"
EU: "Ahn?!" [com cara de poucos amigos]
ELE: "Calma, eu moro sozinho!"
EU [com a mesma cara de poucos amigos e nem um pouco calma]: "Não, muito obrigada!"
ELE: "Mas eu só quero te ajudar, de verdade! Se você quiser comer ou até mesmo dormir na minha casa, não tem problema! Você tem idade para ser minha filha [neta]! Na verdade, eu tenho uma filha [neta] da sua idade!"
EU: "Muito obrigada pela atenção, preocupação e generosidade, mas preciso entrar."
ELE: "Se precisar de alguma coisa, moro no 42. Meu nome é Sherlock, e o seu?" [com um aperto de mão]
EU: "Watson. Bom dia pro senhor."
ELE: "Pra você também, Watson!"
[Essa história é totalmente verídica. :) pra não :*]
PRIMEIRO os ipês amarelos. Tapetes de flores cobriam o caminho durante toda a primavera. Caminhos dourados, que logo foram se tornando marrons. Oxidaram.
AGORA os ipês roxos. Como postes, a cada 25 metros da cidade. Releitura do velho caminho, sem lacunas. Contramão dos sentidos, sensações, sentimentos. Não mudam de cor: se decompõem.

16 de outubro de 2005

Sobre o ser intelectual [moderno]

ALGUMAS constatações sobre a intelectualidade [moderna]:
1) Cachorro? Que cachorro que nada! Gatos, gatos e mais gatos! O melhor amigo dos intelectuais é o gato.
Porque: Cachorros são muito carentes e querem sempre chamar atenção. A luta de egos se torna grande demais.
2) Baladas. Você achava que baladas pertenciam ao universo patriciniano e mauriciano. Ledo engano. Detalhe importante: não são quaisquer baladas. São aquelas regadas a vísqui, música eletrônica e drogas alternativas; não por gosto, mas por ser cool. Ou um revival anos 80, num lugar bem out: nada melhor para lembrar do quão simples um dia foram. Luxo total!
Porque: A música eletrônica misturada com bebida e às vezes com outra coisa fazem com que se tenha uma experiência diferente de esquecimento do eu. Isso já foi feito com absinto e papoula em épocas remotas [rs]. Quer mais in que um revival?
3) Botecos. O ambiente do boteco é cool por si só: baratas, poeira e, se bobear, um ratinho cinza ou uma ratazana. O garçon já é seu maior confidente e o ovo rosa sua melhor refeição.
Porque: Ótimo ambiente para sentir que os grandes pensamentos [e pensadores] podem sobreviver neste mundo simples. Garante uma levantada no ego e histórias de dor de barriga [ou sobrevivência].
4) Tosco. O adjetivo que o intelectual mais usa é tosco. Mas só para qualificar o próximo.
Porque: Deve haver uma sonoridade especial nesta palavra. Não há qualidade mais vil que esta.
5) Depressão. Primeiro foi a tuberculose, que parecia atacar somente os intelectuais, mas na verdade tinha neles seu alvo mais evidenciado. Neste século, a depressão ataca dez entre dez intelectuais. Não há doença mais moderna.
Porque: Se não há depressão, não há consciência do mundo, nem de si. Ou seja: condição sine qua non para ser um ser humano pensante.
BRINCADEIRAS à parte, não é fácil ser intelectual [e moderno].